Registre-se, inicialmente, algumas considerações jurídicas sobre as relações de consumo. A regra geral é de que, para que uma relação jurídica ou um negócio jurídico possa ser analisado à luz das disposições do Código de Defesa do Consumidor, é necessário que a relação existente entre as partes seja considerada uma relação de consumo (de um lado um fornecedor e/ou prestador de serviço e de outro, um consumidor), admitindo-se que possa figurar como consumidor tanto pessoas físicas quanto pessoas jurídicas, nos termos dos artigos 2º e 3º do Diploma legal supracitado.
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Pois bem, a teor do disposto no art. 3º do Código de Defesa do Consumidor, considera-se fornecedora toda pessoa física ou jurídica, que desenvolve atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. O art. 2º do Código Consumerista, por sua vez, define que o consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Nessa linha de ideias, cumpre destacar que o art. 6º, inciso VIII do diploma supracitado, dispõe ser direito do consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente.
Explica-se: a regra geral, constante do Código de Processo Civil, é de que o ônus da prova (ou seja, o dever de provar o que se expõe) é do autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito e do réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Significa dizer, portanto, que no caso de judicialização de alguma questão controvertida, quando reconhecido tratar-se de uma relação de consumo, há a possibilidade de o juízo aplicar o disposto no art. 6ª do Código de Defesa do Consumidor e decretar ser dever do Réu a apresentação de provas que comprovem ser inverossímeis às alegações do autor, ou vice-versa.
Ou seja, o legislador desviou da regra geral prevista no Código de Processo Civil visando facilitar a defesa dos direitos do consumidor. Entretanto, para que isso ocorra, é necessário que os requisitos de hipossuficiência do consumidor e/ou verossimilhança de suas alegações, estejam presentes.
Explica Cecília Matos que o conceito de hipossuficiência deve ser analisado como diminuição da capacidade do consumidor, não apenas sob a ótica econômica, mas também sob o prisma do acesso à informação, educação, associação e posição social. (O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 11, p. 166).
Ademais, a inferioridade do consumidor em relação ao fornecedor, também pode decorrer da desigualdade existente quanto à detenção dos conhecimentos técnicos inerentes à atividade deste. Kazuo Watanabe exemplifica o caso de um consumidor que alega vício de fabricação de veículo contra uma montadora de veículos, onde, só a demonstração, por exemplo, de que o veículo apresenta defeito no motor poderá não ser bastante para o convencimento de que é de fabricação o vício do produto. Em sendo assim, mesmo que o consumidor seja pessoa abastada economicamente e de bom nível intelectual e cultural, talvez lhe seja impossível produzir tal prova, porque somente o fornecedor tem pleno conhecimento do projeto, da técnica e do processo utilizado na fabricação do veículo. Em assim sendo, por dispor de melhores condições de demonstrar a inocorrência do vício de fabricação, ao fornecedor deve ser atribuído o ônus da prova. (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, p. 618).
Sobre o juízo de verossimilhança, este é formado a partir da prova indiciária, que possibilita ao juiz realizar uma associação entre dois fatos: um comprovado (o fato indiciário) e outro apenas alegado (o fato constitutivo do direito do consumidor). A prova do primeiro permite a ilação ou presunção de que o último também ocorreu, por lhe ser consequência ordinária. Há, em tal caso, simples praesumptio hominis realizada pelo julgador. Mas sem esse indício mínimo, não há de onde extrair a verossimilhança da alegação. (A inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor – O momento em que se opera a inversão e outras questões. André Gustavo C. de Andrade. Revista da EMERJ, v. 5, n. 20, 2002).
Ainda quanto a inversão do ônus da prova, o art. 38 do Código de Defesa do Consumidor dispõe, especificamente sobre a comunicação publicitária e da informação sobre o produto/serviço, que: “o ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina”.
Essa inversão automática do ônus da prova está fundada no pressuposto de vulnerabilidade do consumidor, especialmente no que diz respeito à publicidade, com o objetivo de garantir a igualdade material e de reforçar a sua proteção, inclusive no acesso à Justiça.
Pois bem, traçadas as breves explicações acima, passa-se ao caso julgado em 21 de março de 2023 pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1866232, que enfrentou, em síntese, a seguinte questão:
Seria possível, em ação visando à cessação da veiculação de publicidade supostamente enganosa, a inversão do ônus da prova a que alude o art. 38 do CDC, mesmo quando proposta por sociedade empresária concorrente e não por consumidor?
O caso se trata de ação proposta por BK BRASIL OPERAÇÃO E ASSESSORIA A RESTAURANTES S.A. (BURGUER KING) para fazer cessar propaganda supostamente enganosa veiculada por sociedade empresária concorrente, RESTAURANTE MADERO VILA OLIMPIA LTDA., consistente no uso da frase “The Best Burger in the World”, traduzida em português por “O melhor hambúrguer do mundo” em todo seu material publicitário e nas fachadas dos restaurantes, sob pena de multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), bem como a condenação da ré ao pagamento de indenização por concorrência desleal e por desvio de clientela, em valor não inferior a R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais).
A empresa autora requereu a realização de prova pericial e recorreu da decisão que entendeu que o custeio da prova incumbe a quem a requereu, alegando ofensa ao art. 38 do CDC, que dispõe ser ônus de quem patrocina, comprovar a veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária.
Em seus fundamentos alegou, em suma: “(…) b) que o direito consumerista pode ser utilizado como norma principiológica mesmo que não haja relação de consumo entre as partes litigantes, uma vez que se destina a proteger o consumidor de práticas abusivas e desleais do fornecedor de serviços, inclusive as que proíbem a propaganda enganosa; c) que, assim, o recorrido se submete às normas previstas no CDC, tendo, como anunciante, o dever de provar a veracidade e a correção da informação ou da comunicação publicitária que patrocina; d) que as normas civis e consumeristas não se excluem, mas interagem para garantir a máxima proteção do consumidor (…)”.
O Ministro Relator Paulo de Tarso Sanseverino entendeu, preliminarmente, ser perfeitamente possível o ajuizamento de ação fundada em conduta de concorrência desleal e de desvio de clientela com base nas normas previstas no Título I, Capítulo V, Seção III, do CDC. Isto porque, ainda que se trate de ação entre concorrentes – e não entre consumidor e fornecedor – as normas do Código de Defesa do Consumidor que vedam a publicidade enganosa e a publicidade abusiva, acabam também por atingir de forma negativa a concorrência, já que o anunciante passa a competir de forma desleal no mercado consumidor.
Neste sentido, explica Cláudia Lima Marques na obra “Diálogo das fontes: novos estudos sobre a coordenação e aplicação das normas no direito brasileiro, 1º. Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020)”: “Na aplicação coordenada das duas leis, uma lei pode complementar a aplicação da outra, a depender de seu campo de aplicação no caso concreto (diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade em antinomias aparentes ou reais), a indicar a aplicação complementar tanto de suas normas quanto de seus princípios, no que couber, no que for necessário ou subsidiariamente. Assim, por exemplo, as cláusulas gerais de uma lei podem encontrar uso subsidiário ou complementar em caso regulado pela outra lei”.
Entretanto, especificamente quanto à norma prevista no art. 38 do CDC, o Ministro Relator Paulo de Tarso Sanseverino entendeu pela ausência de diálogo das fontes, isto porque a transposição do referido dispositivo legal a uma relação concorrencial não representaria uma defesa maior do consumidor e sequer incrementaria a defesa da ordem econômica. Sendo assim, em demanda envolvendo Direito da Concorrência, não se mostraria correta a presunção de vulnerabilidade da parte autora, que pudesse justificar a inversão direta e automática determinada pelo art. 38 do CDC.
Por fim, salientou que a aplicação da norma prevista no art. 38 do CDC às relações concorrenciais poderia – paradoxalmente – ser utilizada, em determinadas circunstâncias, justamente como instrumento anticoncorrencial:
“Em conduta que ficou conhecida pelo termo em inglês sham litigation, o agente econômico pode se valer de litígio simulado – cuja solução, a rigor, lhe seria irrelevante – para prejudicar a atividade de um pequeno concorrente, que passa a ter que se defender em processo longo e dispendioso, com resultado incerto.
Nesses casos, o processo é utilizado não com o fim de obter o provimento jurisdicional, mas, sim, como meio de dificultar a atividade do concorrente ou mesmo de barrar a entrada de novos competidores no mercado”.
A conclusão então foi por negar provimento ao Recurso Especial interposto pelo Burguer King, considerando que “a inversão ope legis do ônus da prova em desfavor do anunciante em demanda envolvendo concorrência desleal não necessariamente favorece a livre iniciativa, mas, em determinados casos, pode inclusive comprometê-la, o diálogo das fontes, embora justifique a adoção das normas relativas à publicidade previstas no CDC em ações envolvendo Direito Concorrencial (Título I, Capítulo V, Seção III), não autoriza a aplicação do art. 38 do mesmo diploma legal”.