A Propriedade Industrial possibilita a apropriação de inventos através do sistema de patentes, visando o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.
Na área da saúde, o mecanismo de proteção de patentes pode ser aplicado em diversas áreas, como é o caso dos respiradores, equipamentos, medicamentos e vacinas.
No caso de uma vacina ou medicamento, sua invenção, composição da fórmula ou seu processo de fabricação, caso atendam aos requisitos legais, podem ser patenteados.
Segundo o artigo 42 da Lei 9.279/96, a patente concedida confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos.
Os direitos relativos à patente são de interesse, especialmente, da indústria farmacêutica, pois viabilizam a recuperação de seus investimentos feitos na pesquisa e desenvolvimento dos medicamentos.
Portanto, o direito temporário de exclusividade quanto à exploração, concedido ao criador, se justifica como forma de retribuição do investimento e do estímulo à geração de conhecimento e tecnologia.
Desta forma, o mecanismo da patente concede um poder de exclusividade por período determinado sobre a inovação em troca da renúncia ao segredo e da descrição completa do conhecimento.
A garantia do direito de exploração do invento se justifica na medida em que não há estímulo ao investimento em pesquisa onde não haja mínima garantia de sucesso, ou seja, sem que seja resguardada a possibilidade de exploração do objeto da pesquisa.
No entanto, ao fim do prazo de 20 anos do pedido da patente de invenção, ou um mínimo de 10 anos de sua concessão, automaticamente o conhecimento cai em domínio público, podendo ser usado por todos sem o pagamento de royalties.
Especialmente quanto a inovações relacionadas à área da saúde, há de se resguardar um necessário equilíbrio entre políticas de saúde, comerciais e direitos de propriedade intelectual, o que é, inclusive, objeto de tratados internacionais celebrados no âmbito da OMC – Organização Mundial do Comércio, OMS – Organização Mundial de Saúde OMPI – Organização Mundial de Propriedade Intelectual.
Ou seja, através da celebração de tratados internacionais convencionou-se que deve ser cobrado um valor considerado “justo” por produtos relacionados à área da saúde.
Além da busca por equilíbrio convencionada em tratados internacionais, o mecanismo da licença compulsória visa adequar o uso da patente à sua função social, de modo que o direito de exclusividade não é absoluto e pode ser flexibilizado.
A licença compulsória constitui uma das flexibilidades à proteção patentária previstas tanto pela Conveção da União de Paris – CUP (art. 5ª) quanto pelo Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – ADPIC (também conhecido como Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights – TRIPS) (art. 31) e decorre do próprio regime jurídico do direito de propriedade que deve atender sua função social.
No Brasil, o aspecto da função social da patente é reforçado pelo art. 5º, XXIX da Constituição Federal, que condiciona a concessão de um direito temporário aos autores de inventos industriais, ao interesse social e ao desenvolvimento tecnológico e econômico do País.
O instituto da licença compulsória, popularmente também conhecido como “quebra de patente”, trata de uma suspensão temporária do direito de exclusividade do titular de uma patente com a finalidade de permitir a produção, uso, venda ou importação do produto ou processo patenteado, por um terceiro.
Desta maneira, equivocado falar “quebra de patente”, vez que não se trata de expropriação, pois o titular retém a titularidade da patente, inclusive fazendo jus à percepção de royalties pela exploração da mesma.
Com a licença compulsória, o que se retira do titular da patente é a sua prerrogativa de consentimento à exploração da patente de sua titularidade por terceiros, em determinadas situações, com o efeito prático do ingresso da patente em domínio público antes do prazo de extinção de sua vigência.
A concessão de licença compulsória na área da saúde permite que medicamentos genéricos sejam produzidos com base no medicamento patenteado, o que resulta, consequentemente, na disseminação do produto a um custo menor.
Constata-se que as licenças compulsórias foram concebidas como forma de prevenir abusos do exercício de direitos conferidos pela patente.
As hipóteses que ensejam a licença compulsória previstas no artigo 68 da Lei de Propriedade Industrial, são as seguintes:
(i) uso abusivo; (ii) abuso de poder econômico, comprovado por decisão administrativa ou judicial – caso em que aplicar-se-ão as disposições contidas nos §§3º e 4º, relativas à importação do objeto da patente; (iii) não exploração do objeto da patente no Brasil por falta de fabricação ou fabricação incompleta do produto; (iv) falta de uso integral do processo patenteado, salvo se economicamente inviável, caso em que se admitirá a importação; e (v) comercialização que não satisfaça as necessidades do mercado.
O §2º do mencionado dispositivo dispõe sobre a legitimidade subjetiva para pleitear a concessão de licença compulsória. Já o §5º estabelece que o requerimento de licença compulsória só poderá ser feito após três anos contados da concessão da patente para todos os casos, salvo na hipótese de abuso econômico, que não está relacionada à desuso ou uso insuficiente.
Assim, a Lei da Propriedade Industrial prevê os eventos que dão causa à decretação da licença compulsória e estabelece as justificativas que o titular pode apresentar para evitar tal concessão, cuja avaliação de configuração caberá à autoridade competente.
Também há previsão de concessão de licença compulsória de patentes dependentes, nos termos do artigo 70 da Lei de Propriedade Industrial, cabível na hipótese em que se verifica, cumulativamente, a dependência de uma patente em relação a outra, quando a patente posterior constituir substancial progresso técnico em relação à anterior e o titular da primeira patente não chegar a um acordo com o titular da patente dependente.
Já, o uso da licença compulsória por parte do Poder Público está previsto no artigo 71 da Lei de Propriedade Industrial que autoriza o governo a declarar a licença e oferecer uma remuneração financeira justa ao titular da patente pela exploração de seu invento, os royalties.
Ou seja, o Poder Público tem à sua disposição a prerrogativa de declarar a licença compulsória por emergência nacional ou interesse público, cujas modalidades estão regulamentadas pelo Decreto 3.201/99, em seu artigo 2º. Segundo dita regulamentação, entende-se por emergência nacional o iminente perigo público, ainda que apenas em parte do território nacional; por interesse público são considerados os fatos relacionados, dentre outros, à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico ou socioeconômico do País.
Em casos de máxima urgência, existe previsão para a implementação da licença compulsória independente do atendimento prévio de condições estabelecidas para outras situações, o que está definido no artigo 7º, do Decreto no 3.201/99.
Também foi previsto pelo legislador que a licença compulsória não será concedida com exclusividade e, tampouco, será passível de sublicenciamento, não sendo possível opor a exclusividade da licença compulsória ao titular da patente e, sequer, “comercializar” ou estender a terceiros não autorizados licença recebida em condições tão excepcionais, sob pena de se lhe frustrar os objetivos.
O procedimento para requerimento da licença compulsória está previsto no artigo 73 da Lei de Propriedade Industrial onde são definidos prazos, aspectos probatórios, forma de remuneração, solicitação de informações a outras entidades públicas, decisão e recurso cabível.
Paralelamente ao direito de explorar a patente, ao licenciado são impostas obrigações que visam evitar a repetição das condições que ensejaram a concessão da licença compulsória, bem como o resguardo da patente através do impedimento de seu “repasse” desacompanhado do empreendimento que a explore.
Desde 2001, por diversas vezes o governo brasileiro especulou sobre a necessidade de licenciar alguns medicamentos. Porém, o caso do antirretroviral Efavirenz (que combate o vírus HIV) foi a primeira vez que o Brasil, de fato, utilizou o mecanismo da licença compulsória.
Em 2007, o governo publicou a Portaria 886/2007 declarando o antirretroviral como de interesse público, pois o laboratório americano Merk Sharp & Dohme estava oferecendo o medicamento para os pacientes brasileiros a valores mais elevados que a outros países. O laboratório dono da patente teve um prazo para se pronunciar e, com o insucesso das negociações, o presidente brasileiro assinou o Decreto 6.108/2007, licenciando sua patente, o que possibilitou a importação do medicamento na sua modalidade genérica de um outro laboratório. Através do licenciamento compulsório o governo brasileiro conseguiu comprar o antirretroviral de um laboratório da Índia por valores bem abaixo do proposto pelo laboratório americano, tendo sido estipulado pelo governo brasileiro um valor de 1,5% sobre o preço de custo de fabricação ou do preço que lhe foi entregue como royalties para o titular da patente.
Países desenvolvidos e com economia sólida também já fizeram uso da licença compulsória, como os Estados Unidos, que adotaram o mecanismo para finalidades militares, motivos de segurança nacional e, também, para evitar monopólio econômico.
Todavia, a licença compulsória deve ser exceção, e não regra, uma vez que a patente consiste em um instrumento de desenvolvimento tecnológico e industrial, devendo a pesquisa e desenvolvimento serem incentivados.
O alto custo das pesquisas e a complexidade para desenvolvimento de fármacos e vacinas devem ser sopesados antes da utilização da licença compulsória, eis que tal manobra pode desestimular a inovação na indústria farmacêutica e desprover diversas doenças raras de tratamento eficiente.
A concessão da exploração exclusiva por determinado tempo em troca da descrição da tecnologia que consta na patente acaba beneficiando a sociedade que adquire acesso ao medicamento ou vacina obtido através da altos investimentos – de tempo e dinheiro – em pesquisa e produção.
A previsão legal do licenciamento compulsório já é um fator que eleva o poder de negociação do governo de diversos países com a indústria farmacêutica, uma vez que sinalizar a possibilidade de usá-lo constitui um instrumento de pressão por melhores preços.
Assim, deve-se ter muita cautela antes de decretar a licença compulsória de patente, uma vez que não podemos esquecer que o direito de uso exclusivo é a contrapartida aos investimentos realizados na busca por novas tecnologias, de modo que o uso arbitrário do licenciamento pode desestimular as indústrias na busca por novas tecnologias que são tão essenciais para a preservação e desenvolvimento da sociedade.
Autoria: Fernanda Macagnan
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