FLEXIBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO FRENTE À PANDEMIA DA COVID-19

Estamos vivenciando um momento crítico e atípico, de enfrentamento da pandemia do Coronavírus (Covid-19). Um momento de excepcional intervenção do Estado sobre o exercício das atividades econômicas, que trazem – e continuarão a produzir – profundos reflexos às relações de consumo.

É inegável que tanto empresas quanto consumidores são – e continuarão a ser – fortemente impactados pelas medidas estatais intervencionistas decorrentes da decretação de estado de calamidade pública frente ao Coronavírus, e a legislação que hoje conhecemos e sobre a qual até então nos debruçamos para regular estas relações consumeristas tende a ser relativizada diante deste cenário de caos social e econômico, de modo que a balança não penda apenas para um dos lados, e que se possa distribuir os ônus e prejuízos entre toda a cadeia de consumo.

Trata-se, inegavelmente, de hipótese de força maior, que pode ser conceituada como um evento externo, alheio à vontade humana, capaz de impedir o cumprimento de obrigações. 

Estaremos, nos próximos dias, diante da difícil tarefa de equilibrar o direito à proteção da vida, saúde e segurança de todos os indivíduos e consumidores – direitos estes originalmente dispostos na Constituição Federal e reforçados pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) – e o direito, também constitucionalmente previsto, à livre iniciativa, que se revela o nascedouro do princípio da “preservação da empresa”, fruto do reconhecimento da necessidade de valorização da sua função social, haja vista que os interesses que decorrem do desenvolvimento de atividade econômica possuem um valor jurídico que vai muito além das pessoas que a integram.

Se, por um lado, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não prevê de forma explícita a hipótese de força maior como uma das excludentes da responsabilidade do fornecedor, objetivamente restritas às hipóteses do art. 14, § 3º, certo é que, diante da imprevisibilidade da situação caótica instalada em nosso país e no mundo, da boa-fé objetiva que deve nortear as relações contratuais e dos já consagrados princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e da vedação ao enriquecimento sem causa, deverão as partes envolvidas buscar o entendimento objetivando, sempre que possível, a manutenção dos contratos ou sua adequação, de modo a evitar-se a excessiva onerosidade a apenas uma das partes, encorando a aplicação do princípio da conservação do negócio jurídico.

Exemplo desse esforço na busca de conformar os interesses dos fornecedores e consumidores veio com a recente edição da Medida Provisória nº 925, de 18 de março de 2020, em que a Presidência da República estabeleceu diretrizes emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da Covid-19. Dentre as medidas ali previstas se encontram, por exemplo, a ampliação dos prazos de reembolso aos consumidores, pelas empresas aéreas, do valor relativo à compra de passagens, em contrapartida da isenção das penalidades contratuais para os consumidores que aceitarem o reembolso por meio de crédito para posterior utilização.

Estas novas disposições legais visivelmente impõem a modificação de regras contratuais previamente estabelecidas entre as próprias partes e flexibilizam a aplicação da legislação até então em vigor, em especial da Resolução nº 400 da ANAC, do Código Civil e do próprio Código de Defesa do Consumidor.

Evidentemente que nem todos os casos originados desta pandemia serão solucionados de forma harmônica e equilibrada, e, em hipóteses tais, a intervenção judicial fatalmente se fará necessária, cabendo às partes, desde logo, reunir organizadamente a documentação que entendam respaldar seus direitos e buscar o aconselhamento jurídico com profissionais de sua confiança.

É certo, porém, que diante da indesejada e imprevisível situação de vulnerabilidade a que estão sujeitas ambas as partes – consumidor e fornecedor –, em maior ou menor grau, ganharão espaço, nos próximos dias que se seguirão, soluções baseadas no espírito colaborativo e em concessões mútuas, sendo aconselhável às partes envolvidas a busca de orientação e acompanhamento de profissionais especializados na condução e mediação destes acordos.

Vários órgãos de defesa do consumidor, a exemplo do PROCON-SP, vêm inclusive destacando a necessidade de que as negociações entre consumidor e fornecedor sejam pautadas pela razoabilidade e espírito solidário. Como regra geral, nos casos de contratação de produtos ou serviços que não possam ser fornecidos por conta das medidas restritivas impostas pelo surto de Coronavírus, o consumidor terá direito ao reembolso dos valores já despendidos, sem a imposição de multas.

Em tais hipóteses, as empresas devem estar preparadas e bem orientadas para negociar com seus clientes alternativas à restituição de valores, como a remarcação de serviços, ou a concessão de crédito para utilização futura, tão logo a situação esteja normalizada.

Os tempos são, verdadeiramente, de solidariedade e de colaboração em prol da saúde pública e, por isso, os impactos gerados pelas fortes restrições às atividades econômicas, fruto da decretação de estado de calamidade pública, acabarão sendo suportados com maior intensidade pelas empresas. 

Fatalmente, pois, tais impactos se traduzirão, em muitos casos, em decréscimo de faturamento e perda da capacidade financeira, razão pela qual sugerimos aos empresários especial atenção às medidas proporcionadas no âmbito tributário, trabalhista e financeiro, que poderão atenuar parte dos gravosos efeitos provocados por esta pandemia de Coronavírus, e que estão detalhadas em publicações igualmente disponibilizadas em nosso blog.

O detalhamento das principais medidas impostas, no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, pelo Decreto nº 55.128, de 19 de março de 2020, assim como seus efeitos, pode ser conferido em publicação específica disponibilizada em nosso blog.

Preparamos, ainda, um compilado das orientações divulgadas pelos órgãos de defesa do consumidor relacionadas às questões envolvendo os mais diversos bens e serviços.

E lembrem-se: você, consumidor, exerça seus direitos com moderação, boa-fé e sensibilidade, pois as empresas são igualmente vítimas dessa pandemia e, frente a ela, também poderão sucumbir. Você, empresário, aja com lealdade, respeito, e espírito colaborativo, pois enfrentar demandas judiciais poderá ser potencialmente mais gravoso do que buscar uma resolução amigável baseada na equidade e no bom senso.

 

Veja o posicionamento do Negócios Jurídicos no contexto do coronavírus e as premissas do trabalho aqui desenvolvido.