ATENÇÃO ÀS ALTERAÇÕES DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO DEVE SER UMA PREOCUPAÇÃO DE TODOS

O tema aqui abordado é o processo civil brasileiro. Pode parecer um assunto muito técnico, destinado apenas a advogados e operadores do direito, mas, na realidade, atinge a todos, da mais complexa organização ao mais simples cidadão que estejam submetidos às leis brasileiras.

O Congresso Nacional está aprovando, através da Emenda Constitucional 39/2021, a alteração das regras para interposição do chamado Recurso Especial, medida adotada para que a jurisprudência dos tribunais locais, federais ou estaduais, tenham mesmo entendimento sobre a lei de âmbito federal. Isso é de extrema importância para evitar que, sobre uma mesma situação, algumas pessoas tenham reconhecido determinado direito e outras não. Conforme afirma nossa Constituição Federal, todos são iguais perante a lei, portanto e, é de se esperar que pessoas em mesma situação obtenham decisões iguais em todo o território nacional.

Essa Emenda Constitucional tem por objetivo criar um filtro para que o Superior Tribunal de Justiça possa receber e analisar um Recurso Especial, aplicando a ideia de que, quanto mais específicas e com alcance mais geral a todos, melhor serão as decisões proferidas, além de dar maior celeridade aos processos, já que, nos casos filtrados, não haveria o trâmite junto ao Tribunal Superior, ou seja, as causas seriam decididas definitivamente em última instância pelos tribunais locais.

Ainda que o objetivo qualificar as decisões e agilizar os processos seja louvável, a forma como tem sido conduzida essa proposta de alteração da Constituição Federal não parece atender à cautela que se impõe quando o objeto é o direito dos brasileiros, sejam pessoas físicas ou jurídicas. Isso porque o debate travado não tem levado em consideração aspectos importantíssimos que acabam implicando em uma seletividade no mínimo questionável sob o ponto de vista do equilíbrio das medidas.

O Supremo Tribunal Federal já conta com um filtro similar chamado Repercussão Geral. As partes de um processo que venha a interpor o Recurso Extraordinário para exame de uma determinada matéria pelo Supremo Tribunal Federal precisam indicar questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos (individuais) do processo, ou seja, a matéria a ser discutida por meio do Recurso Extraordinário deve ser de interesse da coletividade.

O mecanismo proposto para o Recurso Especial, contudo, é outro.

Primeiramente, existem questões com relevância presumida. Isso quer dizer que, quando estiverem presentes um desses critérios, não haverá avaliação subjetiva para o encaminhamento do recurso ao Superior Tribunal de Justiça. As relevâncias presumidas são as ações penais, as de improbidade administrativa, as causas superiores a 500 salários-mínimos, as que tratarem de inelegibilidade e as contra decisões que contrariem jurisprudência dominante da própria Corte Superior, ficando em aberto a possibilidade de prever outras hipóteses definidas em lei.

A outra forma de fazer o Recurso Especial ser julgado é mediante o convencimento dos julgadores, pela parte recorrente, da relevância da questão de direito federal infraconstitucional, semelhante ao que o Supremo Tribunal Federal faz com a Repercussão Geral. Contudo, não há na proposta de alteração constitucional uma definição mais objetiva das questões que serão consideradas relevantes, como há no caso do Recurso Extraordinário.

Em relação às relevâncias presumidas, verificam-se situações que geram estranheza, tal como a definição de valor mínimo para o Recurso Especial ser julgado. Presume-se que causas acima de 500 salários-mínimos (hoje, em 2022, resultando em R$522.500,00) teriam essa presunção. Entretanto, esse critério alija boa parte da sociedade que discute questões que, muitas vezes, são relevantes para o sistema jurídico brasileiro, porém, não atingem essa cifra. Não há qualquer justificativa associada à proposta da Emenda Constitucional que explique o motivo de escolha de um critério econômico que valide a ideia de que causas com valores inferiores não seriam juridicamente relevantes para o direito brasileiro. Esse critério, desamparado de motivação plausível, acaba servindo para reforçar a existência de preferência para causas em que envolvem pessoas mais abastadas.

Outro ponto que revela preocupação é a previsão expressa de viabilidade do Recurso Especial quando o acórdão recorrido contraria a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que denota um excesso normativo ou externa a forte intenção de realmente haver uma contundente restrição de acesso à Corte Superior. Ora, se a função do Superior Tribunal de Justiça, dada pela própria Constituição Federal, é garantir a correta interpretação e aplicação das leis federais quando provocado, não há sentido de ser essa uma hipótese de relevância presumida, já que, na verdade, é essa a própria causa de existir do Recurso Especial. Se um tribunal local não respeita as decisões do Superior Tribunal de Justiça, não há outra forma dentro do processo judicial senão recorrer à instância seguinte para a correção de rumo. Esse motivo deveria ser visto como forte o suficiente para o conhecimento do recurso interposto, porém, obrigaria o Superior Tribunal de Justiça a julgar sempre em 2/3 dos membros do órgão competente para julgamento para admitir o conhecimento do apelo a si dirigido.

E essa intenção de forte restrição ao trânsito dos Recursos Especiais se materializa ainda mais na previsão de que a lei poderá prever outras hipóteses de relevância presumida. A técnica utilizada para o recurso ao Superior Tribunal de Justiça é diferente da usada no Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, visto que serão hipóteses específicas e, por essa razão, a Constituição Federal passará a delegar à lei, que nesse caso poderia ser ordinária, por não haver limitação à matéria de competência complementar, o alargamento da viabilidade recursal.

Ainda que haja a possibilidade de 2/3 dos membros competentes para o julgamento do Recurso Especial interposto admitirem a viabilidade recursal, o que permitiria que, em tese, qualquer recurso pudesse ser conhecido mesmo sem constar nas relevâncias presumidas, há grande e consistentes razões para se vislumbrar que serão poucos os casos nessa condição, exatamente porque aquela Corte tem procurado desafogar seus estoques de processos e terá que fazer um julgamento inicial antes de enfrentar o mérito do recurso, o que demandará maior ônus ainda.

As mudanças para atualização e qualificação do processo judicial são necessárias, mas precisam ser realizadas com o cuidado que demanda a garantia do direito de cada pessoa que se submeta ao sistema jurídico brasileiro.

Ricardo Preis, sócio do escritório Negócios Jurídicos.