A violação do Direito da Marca

A música ocidental contemporânea ainda respira a era das bandas. A reunião de músicos em torno de uma identidade com o intuito de propagar ideias em forma de música ou apenas vender entretenimento se apresenta diante de nós de forma tão natural que, dificilmente, nos perguntamos como nasce juridicamente a marca de uma banda.

No Brasil, é necessário que a marca seja registrada no Instituto Nacional de Marcas e Patentes (INPI). O registro perante o INPI garante o direito e a exclusividade sobre a marca em todo território nacional.

Um caso conhecido do púbico geral: a Legião Urbana. Não há qualquer meio jurídico de utilização da marca Legião Urbana em atividades musicais, sem que Legião Urbana Produções Artísticas, empresa titular do registro da banda, conceda àquele ajuntamento a possibilidade do uso da marca registrada sob a engenharia empresarial desenhada pelo responsável pelas suas principais obras, concepção e genialidade, o célebre Renato Russo.

A banda Legião Urbana foi concebida e criada por Renato Russo no ano de 1982, em Brasília. Além dos vocais, Renato Russo era também o baixista das primeiras formações do Legião. Foi a seu convite que assumiram na primeira formação Marcelo Bonfá e outros músicos para teclado e guitarra.

Como em diversas bandas consagradas, a formação de maior exposição da banda, com Marcelo Bonfá na bateria, Dado Villa-Lobos nas guitarras e Renato Rocha (Negreti) no baixo só se configurou após a passagem de vários integrantes.

Quem pode visitar a exposição promovida pelo Museu da Imagem e do Som em São Paulo em 2017 pôde perceber que, além do talento artístico aclamado pelo público, Renato Russo desde muito cedo analisava a estrutura empresarial das grandes bandas de rock que o inspiravam.

A exposição demonstrou aos fãs mais atentos uma visão sobre as engrenagens da indústria da música dos tempos das grandes gravadoras e a elaboração de planos para resguardar o artista.

A criação da empresa Legião Urbana Produções, em 1987, por iniciativa do próprio Renato Russo, é exemplo da aplicação prática do que há muito já estava previsto em seus cadernos. Quando da criação, foram ofertadas cotas minoritárias para os integrantes da banda à época, Dado Villa Lobos, Marcelo Bonfá e Renato Rocha.

Renato Russo, na condição de sócio majoritário e administrador, sempre esteve à frente da administração de todos os direitos e obrigações geridos pela empresa que até hoje detém o registro ativo da marca. No ano de sua criação, o capital social da empresa era integrado por 200 cotas, das quais 188 eram de Renato Russo e as demais foram divididas igualmente entre os outros três componentes da banda.

Contudo, em 9 de dezembro de 1987, Dado Villa Lobos, Marcelo Bonfá e o baixista Renato Rocha venderam todas suas quotas sociais para Renato Manfredini Júnior (Renato Russo), recebendo, em razão dessa venda, todo o valor correspondente.

A alteração contratual foi devidamente registrada perante a Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro há trinta e seis anos. Por conta dessa transação comercial, desde então, Renato Russo e, posteriormente, seu sucessor foram os únicos titulares da Legião Urbana Produções, seus direitos e obrigações.

Muito embora o direito do uso da marca seja da empresa na qual os ex-integrantes não mais possuem qualquer participação há mais de 36 anos, com o falecimento do Renato Russo, Bonfá e Villa Lobos passaram então a reutilizar o nome da banda e assim o fizeram albergados por uma sentença judicial que lhes havia autorizado o uso da marca Legião Urbana em produções artísticas posteriores.

Nessa sentença judicial, invocando uma partição colegiada dos referidos músicos, a Justiça Estadual permitiu que os musicistas seguissem explorando o uso do nome Legião Urbana, mesmo tendo vendido e recebido a titularidade desses mesmos direitos décadas atrás.

Essa decisão é combatida, via ação rescisória, atualmente em grau de recurso perante o Superior Tribunal de Justiça, recurso esse relatado pela exma. min. Isabel Gallotti. Na ação rescisória se questionam diversas incongruências e atecnias na decisão pioneira que autorizou o uso da marca: desde a incompetência da Justiça Estadual para determinar qualquer providência frente ao INPI (autarquia federal); até mesmo o respeito ao direito autoral enquanto direito, considerando a estreiteza dos limites impostos à atuação judicial para estabelecer a co-titularidade de determinada marca com base em participação dos músicos na banda.

Enquanto essa decisão ainda é questionada, outra chega quase que concomitantemente ao STJ, sob relatoria da exmo. min. Paulo de Tarso Sanseviro. Essa favorável à empresa criada por Renato Russo. Uma correção insuficiente para aplacar o resultado da ação originalmente movida pelos ex-integrantes estabelece a seguinte lógica: autorizado, via sentença judicial, o uso da marca Legião Urbana, por parte dos ex-integrantes; esse uso, no mínimo, tem de ser remunerado, independentemente do ângulo pelo qual se analise a questão.

Isto é, o TJRJ, preenchendo uma inconsistência do ponto de vista autoral, reconheceu o direito da Legião Urbana Produções Artísticas LTDA. ao recebimento percentual dos valores retroativos, bem como os posteriores, sempre que a marca ‘Legião Urbana’ fosse utilizada por seus ex-titulares.

Tudo, é claro, decorre da insegurança da primeira determinação que relativizou indevidamente a titularidade de um direito autoral referente à marca Legião Urbana.

Afinal, o registro da titularidade de uma marca seja no meio científico, seja no meio artístico, é assunto de observância estrita que não comporta voluntarismos, nem interpretações de ocasião.

Por mais relevante que seja a participação de determinado músico em uma banda, não há como se desconsiderar o efetivo registro do direito autoral (e os contratos dele decorrente), bem como a impossibilidade de não titulares explorarem a mesma marca.

Trata-se de ponto pacífico no direito brasileiro e no de outras nações e os exemplos são vários. Para se ter dimensão, Paul McCartney, um dos mais representativos compositores dos Beatles, se apresenta como Paul McCartney, não como Beatles, atraindo multidões com seu talento.

Longe de ser um mero capricho, ou então exercício de egoísmo, a proteção legal aos direitos autorais de marca é literalmente o que mantém em pé o mercado musical.

Sem essa proteção legal, o principal fruto do trabalho dos músicos (suas criações) poderia ser aquinhoado ou utilizado sem remuneração alguma, bastando que algum músico tenha feito parte da banda do criador da composição. Um cenário fácil de se imaginar, seria a apresentação concomitante da mesma banda só que por diferentes integrantes.

A ser admitida essa flexibilização, teremos um cenário surreal de juízes Brasil afora, avaliando em clipes e músicas acerca do quão relevante é a participação de cada músico em uma banda para, a partir desse elemento intuitivo, lhes autorizar ou não o uso ou não do nome da banda que integraram um dia – insegurança que não é possível, nem sensata.

Não se pode deixar de destacar que não se trata de qualquer restrição ao direito de exercício profissional e artístico ou mesmo de execução de músicas de bandas pelas quais certos músicos já passaram ou não, a questão é simplesmente a de não se admitir que aquele que não detém o registro utilize a marca e diga ao público que se está novamente de uma banda que não mais existe.

Daí porque, ao invés de estabelecer co-titularidades, a depender do efetivo desempenho de cada musicista, certamente cabe à Justiça privilegiar os registros públicos sobre a titularidade autoral, deve-se, acima de tudo, respeitar o princípio da boa-fé contratual dos arranjos negociais firmados entre os músicos sobre esses direitos.

Sem isso, estaremos diante de um cenário babélico, com os registros autorais sujeitos a todo tipo de flexibilização. Os casos aqui brevemente contextualizados são relevantes não apenas para os fãs do Legião Urbana, mas para o mercado musical brasileiro como um todo que, em tempos de pandemia, já enfrenta outros tantos desafios.

 

Fonte: Jota